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Cláudia Müller: Conectada às vozes do público
Cláudia Müller é artista-etc¹ com projetos desenvolvidos em dança, performance, vídeo e instalação. Convidada a compor a curadoria das ações educativas na Bienal Sesc de Dança 2017, Cláudia nos fala nessa entrevista sobre as contribuições da bienal na formação de estudantes, pesquisadores e profissionais da dança e sobre a conexão de seus trabalhos artísticos com o público não especializado, entre outros assuntos. Boa leitura!

Cláudia Muller – Foto: Divulgação
Quais caminhos nortearam a escolha das atividades formativas?
As atividades formativas procuram atender a dois diferentes segmentos: o primeiro seria o público em geral, pensando na aproximação com o público e sua formação, ampliação e fidelização. O outro seria relacionado a atividades para a formação de estudantes, artistas e o que as ações propostas deixam em termos de legado para o enriquecimento e a produção de conhecimento em dança. Então, acho que, em relação à formação de público, começamos pensando desde o usuário do Sesc Campinas ao morador da cidade, sobretudo considerando a presença da Unicamp na cidade e do curso de dança nessa universidade… e, claro, nesses potenciais interessados: alunos, professores e funcionários. E essa aproximação com a Unicamp nos é muito cara. Pensamos também nesse público que se desloca, seja da capital do estado ou de outras cidades, para acompanhar a programação da Bienal e também na importância que a Bienal tem hoje no cenário brasileiro e internacional, tendo em vista que já estamos na décima edição de um evento extremamente relevante e muito consolidado na área.
Um aspecto que nos norteou foi pensar a bienal não como um evento que, de repente, irrompe na cidade a cada dois anos; mas como algo que se constrói continuamente não só pelos curadores, por toda a equipe de colaboradores do Sesc, mas também (e sobretudo) pelos artistas e pesquisadores envolvidos que trabalham constantemente em suas pesquisas, para a construção de seus trabalhos e atividades artísticas; e assim essa programação possa acontecer. Portanto, percebemos que era muito importante que todas as atividades, de alguma maneira, deixassem transparecer que o trabalho do artista é feito nesse processo, num labor diário… acho que isso modifica a relação com o público e é muito importante para que o trabalho artístico seja percebido de uma forma mais completa e complexa.
Abordando o aspecto da formação de público, há um trabalho extenso a ser feito por uma equipe enorme de profissionais – desde a escolha das atividades artísticas e formativas, à divulgação e à comunicação… Há todo um conjunto de ações a se realizar, já que o artista não pode ser sozinho o único responsável por trazer e formar público. Acho que a minha experiência artística e minha pesquisa, que sempre esteve relacionada ao público, me ajuda a pensar essas questões na Bienal.
Por outro lado, há que se pensar a formação de estudantes, pesquisadores, profissionais: como podemos contribuir para o desenvolvimento dos estudos e das pesquisas no campo da dança contemporânea? Para a equipe da Bienal, interessa uma formação que se dê em longo prazo, que possa lançar também sementes para uma possível próxima Bienal. Que aconteçam também encontros e intercâmbios que possam gerar novos trabalhos… Que terrenos férteis podemos criar na Bienal para o desenvolvimento de futuras atividades e parcerias?
A curadoria pensa como o evento pode instituir reflexão, aprendizado, questionamentos que se dão nessa aventura que pretende durar não só de 14 a 24 de setembro, mas reverberar por muito mais tempo.
É possível identificar eixos temáticos nas formativas? Você poderia apontar algumas atividades que se encaixam nesses eixos?
Os eixos que norteiam a programação surgiram no contato com as propostas recebidas, com os artistas que manifestaram o desejo de participar da Bienal envolvendo-se com esse tipo de ação… e como é que essas proposições dialogam com as ações artísticas também. Tendo acompanhado a Bienal desde 2000 e tendo participado de quase todas apresentando trabalhos, pensei em qual seria uma possível “Bienal ideal”, levando em conta muitas questões que já tive, que ouvi dos meus pares ou do público. Procurei ser porta-voz de desejos, questões, insatisfações que percebi nesses 17 anos acompanhando a Bienal.
Ao longo das discussões com a Claudia Garcia e o Fabrício Floro, da equipe de curadoria, fomos percebendo quais questões voltavam a aparecer e dialogavam com o momento atual da dança e do país e foram dando corpo à Bienal… Por exemplo, a questão da formação e da produção artística na universidade nos era cara, sobretudo em função da presença do curso de Dança na Unicamp. Então, há uma mesa relacionada, especificamente, a esse assunto. Há vários trabalhos que apontam para a memória, o legado e a transmissão em dança e essa discussão vai aparecer também na instalação Campo Antípoda (de Christine Greiner, Hideki Matsuka e Ricardo Muniz), na conversa com o artista japonês Takao Kawaguchi e a sua relação com a obra do Kazuo Ohno, na mesa que envolve Luiz de Abreu, Marcelo Evelin, Jorge Alencar e Neto Machado; no projeto Biblioteca da Dança (destes últimos dois artistas); numa oficina da Ana Teixeira discutindo a dança barroca, em trabalhos do início dos anos 2000 que são reencenados como os da Cinthia Kunifas, da Marcela Levi e do Luiz de Abreu; só para citar alguns exemplos… ou seja, há um diálogo constante entre ações artísticas e formativas. Outra discussão que aparece com muita força são as questões de gênero: na Gaymada, na mesa aborda que esse tema e é composta basicamente por mulheres. Por fim, falando resumidamente, outro aspecto importante é a relação da dança com o cinema – com dois filmes ligados às questões políticas e sociais imbricadas no movimento voguing e um documentário que olha para a dança contemporânea na América do Sul. Esses três filmes tocam no tema da exclusão de maneiras muito diferentes, trazendo para a programação uma dança para a qual viramos as costas até hoje (falando da cena do voguing e dos artistas dos países vizinhos). A relação com as artes visuais se faz presentes nos trabalhos da programação e, portanto, não poderia ficar de fora de uma mesa.
Acho que traçamos algumas linhas de discussão e refletimos de que maneira a Bienal poderia acontecer dentro das possibilidades que temos de tempo e de espaço, sendo porta-vozes de uma multidão.
O diálogo da dança contemporânea com outras formas de expressão, como as artes visuais, é cada vez mais observado na produção atual. Em sua opinião, a que se deve essa aproximação? É uma tendência, um caminho natural?
Esse é o objeto da minha dissertação de mestrado, logo me é uma questão muito cara. Não que essa relação não tenha sempre existido, mas percebo que ela apresenta uma série de características particulares a partir dos anos 90, quando é retomada de outra forma. O que se observa é que essa relação nos ajuda a repensar uma série de convenções da dança, suas nomeações, modos de produção, reflexões sobre a sua materialidade, sobre o uso do espaço, sobre as relações com o público, suas formas de visibilidade, a noção de autoria… Percebo que há uma série de desestabilizações e fissuras que são provocadas pela intensificação desse contato. Eu particularmente não gosto de falar em tendência, pois dá uma ideia de um modismo a ser seguido ou obrigatoriedade. A arte é criação de possibilidades que não existiam antes. Espero que não haja nenhum “caminho natural” a ser seguido. Eu prefiro pensar quais são as reflexões que aparecem nesses tangenciamentos. Nessa aproximação, percebo trabalhos muito interessantes, que ganham novas provocações e que redefinem o que pode ser considerado dança hoje.
Para além da seleção de obras, como você vê o papel do curador num festival?
No caso da Bienal, fui convidada para pensar as ações formativas. É a primeira vez que isso acontece. Antes, já tivemos a participação de outros artistas para pensar as ações artísticas, como temos a presença do Wagner Schwartz agora. Atendendo a esse convite, a ideia foi pensar numa não hierarquia entre ações artísticas e ações formativas; e qual é esse desenho curatorial que fazemos que não é apenas escolher as melhores atividades formativas. Interessa, além disso, desenvolver uma linha de pensamento que possa abarcar questões relevantes para a dança e para o Brasil hoje. É interessante também porque é uma curadoria diferente das artes visuais, não só porque os trabalhos são de uma natureza muito diferente, mas porque é uma curadoria que se faz para algo que se presencia no tempo, ao longo das horas, dos dias… Qual é o recorte, o pensamento, quais são os afetos mobilizados ao longo desse percurso que se faz no tempo? Não é só um caminho que se faz no espaço, numa exposição que está lá e permanece da mesma forma, ou quase da mesma forma, dia após dia. Acho que traçamos algumas linhas de discussão e refletimos de que maneira a Bienal poderia acontecer dentro das possibilidades que temos de tempo e de espaço, sendo porta-vozes de uma multidão. A curadoria pensa como o evento pode instituir reflexão, aprendizado, questionamentos que se dão nessa aventura que pretende durar não só de 14 a 24 de setembro, mas reverberar por muito mais tempo.
O que motiva suas investigações e produções em dança?
Nos meus trabalhos artísticos e nas minhas pesquisas, o desejo principal que me move é a conexão com o público. De uma maneira ou de outra, sempre estou pensando em como acessar o público. Procuro me mobilizar no sentido de dar voz ao espectador não especializado, digamos assim. Tentar ouvi-lo de alguma forma, percebê-lo desde o início do processo. Essa é uma questão vital pra mim.
E, normalmente, adoto formatos e espaços não convencionais. Não porque o espaço do teatro ou outros espaços institucionais não nos sirvam, mas é a maneira como minha dança se torna visível. Tento pensar também em que momento, em que lugar, começa e termina essa dança. É uma grande questão pra mim, criar essa “zona de indiscernibilidade”.
Também tenho me preocupado com a forma de visibilidade e partilha dos trabalhos artísticos: como se dão suas aparições e como são mediados por algum tipo de instituição – seja uma instituição rua, instituição artística, edital, espaço cultural… Essas mediações sempre alteram de alguma forma a obra. Tenho pensado como é que o artista e a instituição refletem sobre a potencialização, ou, ao contrário, o enfraquecimento ou o empobrecimento de um trabalho artístico em função da compreensão das suas necessidades. Essa é a questão que move o meu doutorado… E acho que foi riquíssimo participar da curadoria da Bienal pra poder perceber também os dois lados. Como artista, acompanhar como se dá o trabalho dentro da instituição, todas as instâncias, todas as negociações para que a obra venha a público. Esse é um trabalho muito rico. Várias questões que me movem têm a ver com a resposta que dei sobre a aproximação com as artes visuais, quais são os espaços a ocupar, a relação com o público, as nomeações e a possibilidade da dança contemporânea se reconstruir a todo o momento. Sempre que um artista cria uma obra, cria uma nova definição de dança contemporânea.
1. Artista-etc, termo conceituado por Ricardo Basbaum, discute a natureza e a função do artista nos seus diversos papéis possíveis para além da produção de obras. Esta reflexão é apresentada no texto “Amo os artistas-etc.”
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